Faz mais de 30 anos desde que o punk rock invadiu corações e mentes no país. Sim, é bem verdade que discos de bandas pré-punk, como Stooges e MC5, já haviam saído por aqui - os mais antenados já haviam até mesmo importado o primeiro LP dos Ramones, que saíra um ano antes, pela Sire. No entanto, o termo punk não era algo que rolasse de boca em boca lá fora assim, e o que dirá no Brasil de 1976, onde o mercado de rock era uma coisa ainda mais underground do que hoje em dia. O disco A revista Pop apresenta o punk rock tem culpa nisso. Pergunte a Edgard Scandurra, Fábio Sampaio (do Olho Seco), Clemente (Inocentes), Dado Villa-Lobos (já que não dá mais para perguntar ao Renato Russo), João Gordo, etc, etc, etc...
ANTES: Uma das primeiras obras a sair sobre o punk rock no Brasil foi o livrinho O que é punk, pela coleção Primeiros Passos, da falecida Editora Brasiliense. O autor do livro, Antônio Bivar, foi um verdadeiro ativista do movimento punk no Brasil, produzindo shows e discos (como O começo do fim do mundo e Grito suburbano), e canalizou tudo o que viu, viveu e sentiu do movimento, lá fora no Brasil, para a obra. Lá, ficamos sabendo que o termo punk não era exatamente uma ruptura... Aliás, nem mesmo o som do movimento, já que o que os Ramones, os Sex Pistols e outras bandas faziam descendia direto de bandas animais como Who, Stooges e New York Dolls, e da energia do rock´n roll dos anos 50 (Joey Ramone, por sua vez, amava Beatles, Stones e grupos garageiros dos anos 60, dissecados em coletâneas como Nuggets e Peebles).
Bom, quanto ao termo punk, o próprio Bivar dá uma dissecada em suas origens. Em alguns dicionários, o termo abrange uma gama de significados, que vão de "madeira podre usada para acender fogo" a "vagabundo de pouca idade". O segundo significado seria o mais popularizado, logicamente. No filme Juventude transviada, de 1955, o personagem interpretado pelo ator James Dean (amante do jazz, embora tenha se transformado num ícone para rockeiros de todas as épocas), durante uma cena de briga entre gangs, xinga a gang inimiga chamando-os de "punks" (!). No entanto, o mais antigo uso da palavra que se tem notícia é de escandalizar: Shakespeare incluíra em uma de suas peças menos conhecidas, Medida por medida (escrita no século XVII), a frase "casar-se com um punk, meu senhor, é apressar a morte". Em rock, conhece-se a música "Wizz Kid", da banda glam-rock Moot The Hoople, que em 1973 cantava "her father was a street punk and her mother was a drunk". Mas o punk, enquanto movimento ou pelo menos enquanto armação da mídia, ainda demoraria mais uns bons três anos para acontecer. No Brasil, então, nem se fala...
DURANTE: A revista Pop, apesar de geralmente citada como "ancestral da Bizz" (provavelmente pelo fato de também ter sido publicada pela Editora Abril) não era exatamente uma publicação voltada para a música: sua linha seguia algo parecido com o que a Revista MTV segue hoje, misturando música, rádio, moda, costumes e entrevistas. E como na época o jornalismo primava por um comportamento bem distante do que se conhece hoje como "politicamente correto", dá-lhe fofoca, veneno e picuinhas. A revista era tão diversificada que chegava a ter uma seção de astrologia feita por um certo Professor Zemarak (na verdade Carlos Caramez, jornalista e ex-empresário do grupo Novos Baianos) e uma seção de conselhos chamada Pergunte ao Guru. Entre as curiosidades que volta e meia saíam na Pop, uma curiosa entrevista da cantora Ritta Lee (sic), dada pouco após à sua saída dos Mutantes, onde ela dizia que não usava drogas (!) e uma reportagem com a primeira banda punk de São Paulo, Os Filhos da Crise. Filhos da Crise?
Segundo Antonio Bivar, o grupo nunca existiu: alguém da revista deve ter pego uma foto num arquivo qualquer e lançado o factóide. Haviam alguns punks no Brasil sim, mas eles ficariam na encolha até pelo menos 1982. E como não havia internet, as gangs de punks espalhadas pelo país não sabiam que não eram as únicas. O movimento punk de São Paulo (João Gordo, Clemente, Redson, Fábio Sampaio) desconhecia que até mesmo em Brasília havia um movimento, formado por filhos de intelectuais, funcionários públicos, diplomatas, professores e demais pessoas de classe média. E os brasilienses (André X, André Pretorius, Fê Lemos, Renato Russo) se assustaram quando foram a São Paulo, por sua vez.
E lá fora? 1977 era o ano em que a coisa pegava fogo em termos de punk. Enquanto no Brasil comemorava-se os 13 anos da revolução de 1964, bandas como Sex Pistols, Clash, Ramones, Stranglers, Buzzcocks e agregados como os mods do Jam, os botequeiros do Dr. Feelgood, etc, já haviam gravado seus primeiros discos - alguns deles até lançados por aqui. Quanto ao Brasil, em termos de rock não haviam grandes conexões com novidades: o paradigma eram ainda o rock progressivo e o heavy metal, sem contar o hard rock malaco de bandas como Grand Funk e Slade (esta última, por sinal, muto escutada por alguns punks). Isso fora o fato de que censurava-se a rodo, discos eram cortados às vezes sem nenhuma razão e o clima não era favorável a nada. Foi assim que A Revista Pop apresenta o punk rock chegou às lojas.
O DISCO: O LP que ensinou Edgard Scandurra a gostar de punk trazia na contra-capa um texto assinado pelo jornalista Okky de Souza, no qual uma frase de Johnny Rotten reproduzida ("de que adiantou Elvis balançar os quadris se um bando de idiotas decide levar o rock a sério?") dava o tom da bagaça. Lançado com selo Philips (normalmente associado à MPB de Chico Buarque e Caetano, mas aqui servindo ao pop-rock internacional), o disco traçava um paralelo do que era feito nos Estados Unidos e Inglaterra por bandas punk ou pelo menos associadas a este estilo. Bandas como o Ultravox, normalmente associadas a new-wave, não pareciam ser exatanente punk, mas mesmo assim o grupo comparecia com a boa "Young savage". Já as Runaways, um grupo feminino que é geralmente visto como pop-rock fabricado (teve uma mãozinha do célebre produtor Kim Fowley) fecham o lado A com o hard-rockinho "Cherry bomb". Estava claro, a partir disso, que conceituar o punk-rock seria mais difícil do que fazer um cocô voltar ao seu lugar de origem.
Na abertura do vinil, uma das músicas mais emblemáticas da história do punk rock. "God Save the Queen", dos Sex Pistols, tinha sido a música mais controversa do grupo - e abria os serviços, dando espaço para a genial bestialidade dos Ramones e sua "Loudmouth". Ficavam claras as diferenças estéticas entre o paradigma rockeiro da época - que fazia sucesso no Brasil graças a programas como Rock concerto e Rock especial - e o das bandas da coletânea. Não havia virtuosismo, os músicos se preocupavam mais com a urgência e com as melodias do que com detalhes no estilo barroco-rococó. Na parte lírica, havia de tudo um pouco: letras realistas ("Everyone is a winner", do London, é um clássico), comentários no estilo que-se-foda ("Now I Wanna Sniff Some Glue", dos Ramones), crônicas sociais ("In the City", do Jam), política & costumes (os Sex Pistols compareciam com a já citada "God Save the Queen" e com a declaração de princípios "Pretty Vacant", que dizia: "somos bonitos/somos bonitos/e vazios/e não estamos nem aí"), etc.
Musicalmente, os grupos citados mostravam que a tão falada "ruptura" que o punk provocou, realmente, é apenas uma questão de contexto. Uma das bandas mais queridas desse período do punk rock, Eddie & The Hot Rods, apresentava uma saudável mistura de punk com shuffle (ritmo dos anos 50) em ''I Might Be Lying" e "Writing on the Wall". O Jam, por sua vez, homenageava um dos inspiradores dos Beatles (Larry Williams, com "Slow Down"). Bolas fora, só na escolha da banda francesa Stinky Toys, com a bobinha "Bozzy Cried", para fechar o disco. De resto, era o retrato de uma época.
DEPOIS: Pelo que consta, a Pop provocou certo alarde com o disco - embora provavelmente ele tenha vendido pouco e tenha tido pouca tiragem. Só que numa das edições seguintes da revista, alguém da Pop tomou ácido e decidiu convidar o pessoal do Made In Brazil (uma das mais tradicionais formações de hard-rock macho do cenário rockeiro brazuca) para estrelar um ensaio de moda punk (!). Eu, hein... Fato é que A Revista Pop Apresenta o Punk Rock pelo menos alargou o mercado para que determinados discos fossem lançados no Brasil. Naquele mesmo ano, Never mind the Bollocks saía aqui, também pela Philips, e discos de bandas como Clash e Stranglers também ganhavam edições nacionais.
Ainda assim, o movimento punk esperaria mais um pouco para acontecer no Brasil. No final da década de 70, as primeiras bandas punks brasileiras já apareciam e em 1982, Fábio Sampaio (o mesmo do Olho Seco), montava nas Grandes Galerias, em São Paulo, a loja Punk Rock, que acabou lançando o primeiro disco do movimento punk brasileiro, a coletãnea Grito suburbano (1982), com Cólera, Olho Seco e Inocentes. Diz a lenda que Antônio Bivar, de volta ao Brasil após passar uma temporada estudando literatura em Londres, deparou-se com a emergente cena punk na famosa galeria paulista e pensou com seus botões: "Ué, aqui também tem?". Tinha, sim. E quando, alguns anos depois, até mesmo o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade dedicou uma crônica ao assunto, João Brandão adere ao punk (ressaltando o caráter contestatório e a franqueza do movimento), a impressão que ficou foi a de estrago feito, missão cumprida. O golpe dentro do golpe dera certo.
A Revista Pop Apresenta o Punk Rock
01. Sex Pistols - God Save the Queen
02. Ramones - Loudmouth
03. The Jam - In the City
04. Eddie and the Hot Rods - I Might Be Lying
05. Ultravox - Young Savage
06. The Runaways - Cherry Bomb
07. Ramones - Now I Wanna Sniff Some Glue
08. Sex Pistols - Pretty Vacant
09. London - Everyone's a Winner
10. The Jam - Slow Down
11. Eddie and the Hot Rods - Writing on the Wall
12. Stinky Toys - Boozy Creed
creditos lagrima psicodélica